NÃO ESPERES DEMASIADO DO FIM DO MUNDO

UM FILME DE RADU JUDE





MATILDE DIAS

O mais recente projeto do romeno Radu Jude, Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo (2023), leva os espetadores numa das mais penosas viagens de carro alguma vez vistas em tela. O penoso não é aqui empregue pela fraca qualidade técnica ou narrativa, antes pelo contrário, mas sim pela sua perspetiva (literalmente) cinzenta da precariedade laboral. Ao longo de quase três horas de jornada, a câmara toma o lugar do pendura no veículo de uma assistente de produção, cuja função é ganhar a confiança de um grupo de vítimas do sistema capitalista, enquanto lida com as suas próprias mazelas do ofício. A sátira é afiada, em particular nos momentos em que o seu alter-ego tiktoker, misógino e íntimo de Andrew Tate, entra em cena. Pelas pontuais visitas aos tons vibrantes de segmentos do filme de Lucian Bratu, Angela Moves On (1981), cresce a sensação de que pouco ou nada mudou, nas décadas que separam ambos os empregos sobre rodas. Radu Jude ensina-nos a não esperar demasiado do fim do mundo, porque, antes de mais, a sua existência nunca trouxe nada de bom. Afinal, o apocalipse será tão ou mais taciturno do que a vida num universo, onde apenas as baratas e os milionários estão habituados a sobreviver.



MIGUEL CHORÃO

O título, infelizmente, confirma o meu pensamento (às vezes diário) de que o fim do mundo não será um apocalipse bíblico ou uma terceira guerra mundial. O “fim do mundo” pode e é a realidade que muitas pessoas vivem todos os dias.

Ao longo do interminável dia na vida de Angela, vamos acompanhando situações angustiantes que nos são entregues com uma naturalidade mundana e rotineira desconcertante. Há quem tenha (sabiamente) apelidado este filme como a irmã mais velha de “Perfect Days” de Wim Wenders e agora que o tempo já acalmou o meu pensamento caótico e irritado, consigo concordar. Enquanto os dias perfeitos de Wenders nos escondem com calma e tranquilidade um final inquietante, Radu June mostra-nos desde o início que é possível sobreviver numa inquietação constante onde muitos não têm a escolha de mudar. “



JASMIM BETTENCOURT

Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo é um retrato da sociedade contemporânea que alegremente caminha a pique para a sua própria exaustão. Angela, interpretada com todo o fulgor por Ilinca Manolache, encerra em si o cinismo da condição do trabalhador moderno, sobre-explorado e sobre-estimulado, cujo único meio de escape é o sh*tposting.



LEONEL MENAIA

Numa era em que o virtual venceu o real, as imagens criadas a partir da realidade tornam-se a própria realidade, vivida através de um ecrã. Este novo paradigma, a disseminação da máquina de filmar, o acesso à internet e as diversas plataformas de partilha de conteúdo permitem - e de certo modo, incentivam - a manipulação destas imagens para proveito próprio. Seja através da criação de personagens, de narrativas que se sobrepõem à realidade ou até do uso de inteligência artificial para a edição em tempo real, a capacidade de moldar a percepção visual do mundo é ampliada como nunca antes. Esta premissa serve como base para a estética de “Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo”.

Acompanhamos a assistente de produção, Angela Raducani, enquanto conduz por Bucareste e realiza castings para um vídeo promocional de segurança no trabalho. No seu tempo livre, filma sketches misóginos satíricos à Andrew Tate para o TikTok. Enquanto que o seu trabalho maçador, que consiste em conduzir o dia todo de um lado para o outro à procura de pessoas que ficaram incapacitadas, é filmado a preto e branco - refletindo o desinteressante, penoso e miserável do capitalismo tardio -, tanto os seus vídeos para o TikTok como o vídeo promocional são filmados a cores. Para além disso, são contrapostas também imagens a cores do filme romeno “Angela merge mai departe” de 1982, um filme sobre o dia a dia de uma taxista, situado num passado sob o domínio de Nicolae Ceaușescu, fazendo um paralelo com a actualidade onde a misoginia, xenofobia e corrupção não parecem muito diferentes.

A narrativa culmina na filmagem do vídeo promocional para qual Angela realizou os castings, um plano único sequencial de 30 minutos onde tudo parece desmoronar. A empresa tenta manipular a narrativa do acidente de trabalho para a favorecer, as falas são alteradas tantas vezes que se tornam impossíveis de memorizar, as condições meteorológicas tornam-se adversas à filmagem e, no meio disto tudo, Angela continua a filmar os seus TikToks.

Em suma, a realidade de uma assistente de produção sobrecarregada de trabalho é contraposta com os vídeos misóginos que grava para o TikTok, o vídeo promocional de segurança no trabalho que está a produzir e filmagens de um filme romeno de 1982. Radu Jude explora como o espectáculo e a pós-verdade substituíram a realidade, cuja misoginia, xenofobia e corrupção estão tão presentes como há 40 anos atrás.







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