RED ROOMS

UM FILME DE PASCAL PLANTE 




ESTER DAMÁSIO 

Tecnológico e obsessivo, Red Rooms é o mais recente filme de Pascal Plante que toma como foco os crimes horrendos de Ludovic Chevalier, o Demónio de Rosemont. Neste filme, o realizador reflete sobre o que se tornou um espetáculo moderno- a versão contemporânea dos gladiadores romanos nos coliseus. Falo, claro, da onda de obsessão com true crime que cada vez mais tende a dominar as plataformas, tanto de entretenimento como de notícias. No entanto, o fator diferenciador deste filme é que não se foca no conteúdo do true crime em si, visto em séries como o Mindhunter, mas sim em como o fascínio afeta as pessoas. Embarcando nesta missão de remover a divisória entre sujeito e objeto, o enredo é centrado em Kelly-Anne, uma jovem que fica inexplicavelmente cativada pela violência e abusos que cobrem os homicídios de Kim, Justine e Camille. Apesar de uma ideia inovadora- mudar a ênfase dos casos de homicídio e dos homicidas em si para o fenómeno de fangirl de assassinos psicopáticos- a sua concretização é assombrada por uma nuvem de perguntas não respondidas e um nível de sexismo subliminarmente presente ao longo do filme. Irracionais, vitimizadas, impotentes perante o que julgam injusto, as personagens femininas deste filme são sempre definidas em relação a Chevalier.

As suas três vítimas são só isso mesmo, vítimas. O seu único outro instante de personalização é quando são descritas como filhas. Sendo, portanto, novamente caracterizadas unicamente pelo seu género. O que importava para o homicida eram as suas características físicas e género, e por associação isso é tudo o que nos deve interessar também. Mas mesmo direcionando o foco para as personagens mais aprofundadas de Kelly-Anne e Clementine, a conclusão é a mesma. As suas ações são produto direto dos comportamentos, ou falta deles, de Chevalier, e se há dimensões das suas vidas não relacionadas a ele, nós não temos acesso às mesmas. Quando Clementine decide que não quer mais fazer parte do espetáculo midiático do julgamento porque se apercebe da culpa do Demónio de Rosemont, sai completamente do filme. Porque o seu papel como pessoa não é relevante, apenas o seu papel como apaixonada pelo assassino. No caso de Kelly-Ann, apesar de ela encarar uma posição de oposição em relação a Chevalier, todas as suas ações continuam a ser ditadas por ele: onde ela vai dormir, que roupa é que ela vai usar, em que é que ela vai gastar o dinheiro. Ainda que os motivos por detrás desta ação não sejam para o benefício de Chevalier, continua a verificar-se o facto de ela se reger consoante as regras definidas por ele.

É por causa desta relutância de definir as personagens de modo independente que nos é difícil como público relacionar e identificar com a personagem principal, compreender a sua motivação, ou desvendar os eventos que a levaram a este ponto de obsessão. A falta de emoção de Kelly-Ann chega quase a passar também por algum tipo de psicopatia. Consequentemente, o resultado destas características é traduzido numa personagem monótona e não empática. Não nos é proposta uma alternativa viável. O primeiro momento em que a vemos a ser amável é quando dá dinheiro a Clementine, no entanto, por causa da sua postura non challant em relação a este gesto que claramente significa tanto para a amiga, parece que Kelly-Ann apenas o faz porque tem imenso dinheiro e nenhum sítio onde o gastar. Outras personagens, como a mãe de uma das vítimas ou as apresentadores de televisão, são tão vazias de personalidade que a única coisa a que o filme se consegue agarrar para as definir é o seu género. A mãe que é estereotipada como a mulher sentimental e incapaz de verbalizar uma frase sem se desfazer em lágrimas, e as apresentadoras que aparecem maioritariamente como objeto de chacota dos seus colegas masculinos.

Red Rooms não tem nem deve ser definido pelo seu tratamento das personagens femininas. Não lhe pode ser tirado o mérito como um bom thriller, um filme com uma fotografia bem trabalhada e uma banda sonora que consegue transmitir os temas mais horripilantes dos filmes. No entanto, o papel feminino é inegavelmente central à história, e por isso é preciso incluí-lo no balanço global feito do filme.
 


INÊS MOREIRA


It should be said in advance that the representation of violence is part and parcel of the history of moving images - pointedly formulated, it is part and parcel essence.
Michael Haneke, em Violence and the Media

Michael Haneke tem uma opinião muito forte sobre a violência usada de forma leviana no cinema e nos media e de que forma é que não estará esta a contribuir para uma normalização de um aumento da violência na vida real. Nos dias de hoje, esta representação da violência não me parece só normalizada, medo de Haneke, mas cada vez mais procurada pelo espectador. São crescentes as comunidades de fãs de séries e podcasts de true crime. Os documentários sobre casos de violência mediáticos têm crescido abruptamente. E os protagonistas destes -  violadores, assassinos em série, pedófilos - atingem o estatuto do estrelato, passando a ter uma fama comparável à das estrelas de cinema de antigamente. Cria-se, assim, uma espécie de culto à volta destes e dos seus atos. O realizador canadiano Pascal Plante parece ter esta crescente curiosidade mórbida em mente ao trazer-nos o seu thriller psicológico Red Rooms (2023).

Red Rooms acompanha Kelly-Anne, uma modelo que se torna obcecada com o julgamento de um caso mediático de violação e assassinato de três jovens. Mas a questão fulcral é: Será Kelly-Anne tão diferente de nós, espectadores assíduos do submundo do true crime? Para esta, há quase uma missão à qual ela não consegue virar costas: a de participar na investigação do crime.  Porque é que, a par de Kelly-Anne, sentimos esta necessidade de nos envolvermos tanto? O mesmo aconteceu, por exemplo, com o caso mediático do julgamento de Johnny Depp e Amber Heard, e, mais recentemente, com o caso dos irmãos Menendez.

O interesse do filme não é expôr o espectador à violência (a esse desejo, o conteúdo à volta do true crime já dá resposta suficiente), aliás a maior parte da violência já aconteceu no momento em que o filme inicia e, todas as vezes, que as personagens parecem (re)vê-la, esta não fica disponível para nós espectadores, apenas refletida na cara das mesmas. Pascal Plante não nos mostra nada, talvez para nossa infelicidade à partida, mas é precisamente aí que define a sua mensagem. Primeiro, porque a ideia não é contribuir ainda mais para este cultivo da violência mas, por outro lado, para entender o porquê do seu interesse crescente. E em segundo lugar, porque Plante soube perfeitamente como, apenas através de vislumbres e som, envolver de forma exímia o espectador no horror e na tensão do tema que aborda.





LEONEL MENAIA

Red Rooms leva-nos a questionar o nosso fascínio pelo mórbido e perturbador e o quão dessensibilizados estamos da violência, numa era digital em que o contacto visual com esta está à distância de um click. É um estudo psicológico de uma personagem peculiar, versada no uso da dark web e nas suas ilegalidades, e um thriller de deixar os nervos à flor da pele.

Desde o primeiro plano sequência que Pascal Plante brinca com as expectativas do espectador. Estaremos a ver um courtroom drama? Sim, mas não só. O objecto de estudo é Kelly-Anne, modelo, hacker com vasto conhecimento da dark web, jogadora de poker fria e calculista e adepta fervorosa de exercício físico; corpo são mente sã, ou lá como costumam dizer. Estranhamente obcecada com o caso, questionamo-nos sobre o seu envolvimento no crime, enquanto acolhe Clementine, uma jovem que desenvolve uma estranha parafilia com o alegado assassino, acreditando na sua improvável inocência e incapaz de ver a maldade por trás dos seus culpados olhos azuis. Mas o filme não é só um estudo de personagem, é também um relato perturbador sobre o poder da tecnologia e as profundezas obscuras da internet. Através de Kelly-Anne,

vemos como a dark web serve de palco para o voyeurismo mórbido e o tráfico de imagens chocantes, onde a linha entre espectador e cúmplice se dilui. Entre plataformas de streaming secretas, fóruns anónimos e criptomoedas, a narrativa sublinha o impacto desumanizador do mundo digital, um espaço sem limites morais. No final, a questão que sobressai é: seremos nós também parte do problema? Será que o nosso fascínio por casos violentos como estes, seja na vida real ou na ficção, também um sinal de dessensibilização à violência?




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